Renúncia do Papa - Artigo
Ele não queria ser bispo. Não queria ser Papa. Caiu-lhe no colo uma das piores crises da História da Igreja. Grande intelectual, ele não se trancou numa torre de marfim. Fez o que podia, muito ajudado pelas igrejas nacionais, como a dos Estados Unidos. A história do cardeal Mahony mostra que ainda não é o suficiente. Joga uma sombra sobre o conclave.
A Bento XVI restou decretar um tempo de purificação. Uma Igreja sob o signo da Quaresma. E isso vai durar muito tempo. Mas ele não ficou parado. Lançou as sementes para um novo tempo. Sai desprestigiado. Mais tarde, será visto com outros olhos.
O que ele quis fazer? No próprio bojo da crise, ir em busca do que é o “especificamente católico”. Que fica às vezes esquecido no dia a dia, quando a vida é confortável. Há uma força purgativa no sofrimento.
Qual foi o fio condutor da teologia do Papa Ratzinger? Dialogar com a Idade Moderna - que também vive uma imensa crise - e, ao mesmo tempo, remontar às origens. Recuperar o senso de aventura do cristianismo primitivo. Explicar que a mensagem cristã tem de ser um sim, e não um não.
E assim ele inverteu o estereótipo. Ele ia ser o Papa-rottweiler, o caçador de dissidentes. Não foi o que se viu. Ele não deixa de ser um conservador. Mas seu propósito central foi recuperar as bases da ortodoxia. Varrer o pó de séculos de controvérsias e de legalismo para descobrir as coisas que são capazes de dar sentido a uma vida.
A Europa, sobretudo, não sabe mais o que é o catolicismo. Segundo os clichês, seria um rígido sistema de regras e restrições, destinado a segurar uma instituição que desmorona.
Ratzinger contava outra história. Que ficou encoberta debaixo de uma nuvem de escândalos, ou de gafes, de alguém que é basicamente um professor, um scholar.
Mais algum tempo, e ele será visto de outra maneira. A quem ele estava se dirigindo? Ao profundo desejo do ser humano por algo de infinito, algo que vá além dele mesmo. É a intuição que dorme dentro de nós, que não precisa afrontar a ciência, mas que vai além da ciência.
Há aquela imagem da Bíblia, realista ou mitológica: a do jardim do paraíso, onde homem e mulher andavam sob a sombra de Deus. Esse estado paradisíaco vai sendo rompido, ao longo do tempo, pelo que existe em nós de desordenado, de excessivo, de violento. Mas ele pode tornar-se realidade, por exemplo, nas pessoas espiritualmente realizadas, pessoas em quem a gente encontra, nas palavras de São Paulo, “a paz que ultrapassa todo entendimento”.
Esta é a mensagem do Evangelho, e foi o que Bento XVI desfiou nas belíssimas homilias das quartas-feiras, no Vaticano. É a aventura cristã, um senso de romance como não existe outro. Chesterton tinha essa intuição - de uma realidade que é, ela mesma, um milagre, a que você pode ter acesso se não se deixar dominar totalmente pelas exigências do dia, por exigências descabidas em termos de conforto, de prazer, de poder e de riqueza.
E nesse contexto aparece o mistério da Igreja, que não é para ser uma superestrutura, uma superarquitetura, e sim o espaço onde se vive a experiência cristã, a experiência do outro, a comunhão dos santos. Igreja que não é do Papa, do bispo, do padre, e sim de todo o povo de Deus. Espaço para a vida sacramental, para o sacrifício da missa, que reencena um antigo mistério.
Tudo isso Bento XVI contou em seus livros, e no maior deles - a trilogia dedicada a Jesus de Nazaré. As chances são de que teremos agora um Papa mais pastor do que intelectual, mais hábil nas questões do dia a dia. Mas o Papa que sai, na sua postura não muito carismática, deixa uma herança que ajudará a Igreja nos tempos duríssimos em que ela está mergulhada.
Fonte: www.oglobo.com
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